terça-feira, 6 de setembro de 2016

Perfil
Fiodosia Coelho Duarte

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Há quase 86 anos, no dia 1 de Setembro, nascia Fiodosia Coelho Duarte, uma menina que só viria a ser registada dias depois, no dia 6. Nasceu num barracão, em Belas. O seu pai era político e estava fugido ao Salazar para não ser preso e foi neste barracão que encontrou as situações que lhe pareceram as ideais para ele e a sua família ficar. Exactamente seis dias depois, o pai de Fiodosia acabaria por não resistir a uma pneumonia.

Ficou só com a sua mãe e com as suas duas irmãs. O seu pai teve mais duas filhas. E depois de ele morrer, foi cada uma para seu lado. Fiodosia ainda ficou um tempo com a mãe porque tinha só seis dias, mas depois foi criada pela sua tia avó. Conseguiu tirar a quarta classe, o que foi muito bom porque, naquele tempo, nem todos a conseguiam tirar. “E também aprendi muitos louvores, sabia fazer tudo”, diz Fiodosia, recordando os seus tempos de infância, que duraram até crescer e se tornar independente.

Aos 16 anos, saiu do colégio interno onde tinha estado até então e conseguiu um emprego, num consultório, no qual trabalhava como fisioterapeuta. Nessa altura, vivia em Barcarena, onde morava a sua família, mas ia todos os dias para Lisboa. “Aos 20 anos, casei-me com o meu marido e foi até ele morrer. Foi uma vida muito boa. Ele era das pessoas que vivia melhor na terra porque o meu marido não era rico, mas era muito económico. Geria muito bem o dinheiro que tinha”, recorda. 

“No tempo do Salazar, o meu marido comprava o Avante, mas tinha de o comprar às escondidas, porque senão corria o risco de ser presa. Como eu estava em Lisboa, eu é que comprava. E nesse tempo havia um jornal que era o Diário de Lisboa, onde havia um jornalista que volta e meia escrevia artigos contra o Salazar, e então os jornaleiros anunciavam isso para conseguirem vender os jornais mas nós tinhamos de ir comprar os jornais às escondidas. Eu saía do consultório, fardada com a minha bata, com a minha farda de enfermeira, e ia ter com a mulher dos jornais, comprava o jornal, e metia-o debaixo da farda às escondidas. Ninguém podia ver. A nossa vida era assim”, conta.

Fiodosia recorda estes tempos como tempos muito duros, devido à repressão que o regime exercia sobre o nosso país, sobre as pessoas, enfim, sobre tudo e sobre todos. Tempos em que as pessoas não podiam falar nem juntar-se na rua. Se tal acontecesse, se fosse visto um grupo de pessoas na rua, apareciam logo uns homens vestidos de preto, que eram da PIDE, para saber o que é que estavam a fazer. Tempos em que a repressão era uma das palavras de ordem, e que só terminaram aquando da Revolução do 25 de Abril de 1974.

“Eu estava em casa, eram 6h da manhã. O meu marido ligou a telefonia e soubémos que tinha havido uma revolução. Liguei para o meu patrão pra saber se ia trabalhar, porque havia a revolução, e ele disse-me que sim, que eu ia abrir o consultório, e o meu marido disse-me “Não, não vais sozinha. Eu vou contigo” E foi. Fomos os dois para Lisboa”, conta Fiodosia. Nesse dia, no consultório, não apareceu ninguém. As pessoas tiveram medo. “O meu patrão era casado com uma prima do Caetano e não saiu de casa durante 8 dias. Eu é que tratava os doentes. Tinha muita prática, sabia muito do ofício. Eu é que recebia as credenciais, eu é que tratava os doentes sozinha, sem médico, porque ele não saía de casa”. O consultório, situado na avenida Duque de Loulé, na zona do Marquês de Pombal, ficava muito perto da Embaixada Americana. “Nós estávamos numa esquina e a Embaixada era na outra, de maneira que eu ouvia uns grandes barulhos vindos da de lá, havia grandes manifestações. E também muitas greves, muita balbúrdia. Como eu dizia ao meu marido, abriram-se as jaulas e os leões soltaram-se”.

Fiodosia foi casada com o seu marido, Rogério, durante 54 anos. Quando Fiodosia tinha 31 anos, nasceu a filha Maria Emília e, 4 anos depois, aos 35, nasceu o filho Júlio. Os dois filhos que deram a Fiodosia e Rogério duas netas: Bárbara e Débora. “Lá fomos criando as nossas netas, com muito amor, até que o meu marido teve um AVC. Esteve um mês em casa, não falava nem mexia o lado esquerdo do corpo, mas nós sabiamos e sentíamos que ele pensava em nós e também nos sentia. Parece que esteve à espera que a neta fizesse anos. A Bárbara fez anos no dia 1 de Agosto e ele faleceu no dia 2. Ainda comeu o bolinho dos anos dela”, conta.

Depois da revolução, andava toda a gente contente. Muito mais contente. “Falávamos, conversávamos, ríamo-nos, porque a PIDE deixou de existir. Nós vivíamos tão oprimidos. Nós já estávamos sempre desconfiados de que se nos juntássemos ia acontecer alguma coisa e aparecia sempre alguém da PIDE. Sempre. Nós tinhamos de subir as ruas pelo lado direito, não podiamos virar à esquerda. Tinhamos de subir e descer pela direita. Se descíamos pela esquerda, aparecia sempre alguém atrás de nós para ver o que faziamos. Depois do 25 de Abril, isso já não acontecia”. Outro episódio que Fiodosia guarda bem presente na sua memória, a par do 25 de Abril, é o funeral de Ary dos Santos.

Fiodosia, que em parte seguiu as pegadas do pai, percebia muito de política. Os mesmos interesses que vinha a ter, posteriormente, também com o seu marido. Conversavam muito sobre política e sobre imensos assuntos. De maneira que eu alcançava muito aquelas coisas, e mesmo ainda hoje alcanço muita coisa. Eu tenho quase 86 anos, mas o meu cérebro não é de 86 anos. Sei o que digo e não me esqueço do que se passou”, afirma Fiodosia. Fiodosia e o marido, Rogério, liam muito. Não mostrando que ambos eram políticos, sabiam tudo o que se passava e a Revolução de Abril foi para eles um grande alívio. Fiodosia conta ainda que o seu nome é russo e que, enquanto trabalhou teve, de certa maneira, vários problemas com o seu nome. “Uma vez, tratei um senhor que era da Embaixada e ele disse-me se eu quisesse ser funcionária do Estado não era autorizada por causa do seu nome. E quando me empreguei, o meu patrão não me chamava Fiodosia. Estive lá largos meses e ele chamava-me sempre Maria. Pôs-me esse nome só pelo simples facto de o meu nome ser russo. Por isso veja lá como é que as coisas eram, como era a pressão em que trabalhávamos e vivíamos. Trabalhei dos 16 aos 62 anos, sempre 12 horas por dia. Não tinha feriados, só domingos”.

As mulheres iam para o emprego de chapéu. Não podiam levar o cabelo à mostra. Fiodosia costumava usar boinas. Os homens, por sua vez, tinham de usar gravata. Às vezes, mesmo com os sapatos estragados, porque não tinham dinheiro para mais, mas tinham de levar mesmo a gravata e a camisa branca. Fiodosia recorda ainda que, naquele tempo, as mulheres não podiam entrar nos cafés, não era uma coisa bem vista. Mas Fiodosia entrava. “Não tinha vergonha nenhuma nem tinha medo”, diz. Antes de estar a trabalhar na avenida Duque Loulé, Fiodosia trabalhou no Rossio, muito perto da Pastelaria Suiça. Nesta pastelaria, de renome, só entravam as senhoras de chapéu. Os criados andavam todos fardados, e tinham uns bolos que faziam as perdições de Fiodosia que, com a sua gabardine velha e as suas botas até aos joelhos, entrava na pastelaria para comprar esse mesmo bolo. Todas olhavam para si, de lado, mas comprava o bolo e saía. Fiodosia recorda ainda uma situação que aconteceu na altura em que a penincilina começou a ser utilizada no nosso país. As injecções ou os comprimidos tinham de ser dados aos doentes de 12 em 12 horas, ou seja, quando estes estavam em casa. Fiodosia conta que em frente ao Coliseu dos Recreios havia uma “casa de meninas” naquele tempo e um dos medicamentos tinha de ser dado a uma pessoa que morava mesmo por baixo. “Nunca me importei com as opiniões dos outros, nem nunca tive medo de ir a algum lado. O que era preciso fazer, fazia-se. Sempre tentei incutir estes valores aos meus filhos e depois também às minhas netas. Nunca ninguém é superior a nós. Podem ter mais cultura, ou ter mais encargos, mas moralmente somos todos iguais”.

Durante muitos anos, Fiodosia trabalhou muito. Dentro de sua casa, era ela quem fazia tudo. Até pintava a sua casa no verão, nas férias. Fazia também a roupa dos seus filhos e muitas outras actividades, como o crochet, que ainda hoje faz com muita regularidade, e as leituras. Aos 7 anos, teve uma tuberculose. E, aos 28 anos, um abcesso pulmonar que a deixou muito mal. Hoje, Fiodosia diz que mesmo “sempre doente, sempre com coisas e mais coisas, lá vou empurrando a vida”. E com força. Com a mesma força que continua a ter para contrariar a idade, como conversar com a sua neta para desenvolver o seu cérebro pois a perda de memória é uma coisa da qual tem muito medo. “Durmo muito pouco. Às três da manhã, já estou dormida. Então, ponho-me a ler ou a fazer crochet, e é assim que passo as minhas noites. Ainda esta noite, acabei de ler um livro e já comecei a ler outro”. Leu muita coisa, e ainda lê muita coisa, fruto do gosto pela leitura que diz ter guardado do seu pai. Para Fiodosia, “Cada um tem as suas ideias, e eu tenho as minhas. E ainda hoje choro pelo pai, e não tenho vergonha de dizer que quase com 86 anos ainda choro por ele. O meu pai é tudo para mim e eu não o conheci”. Ainda hoje, tem uma folha do Diário de Lisboa, de 1932, em que falam do seu pai. Guarda-a, como uma relíquia, dizendo, cheia de orgulho, que a há-de deixar à sua neta Bárbara.


Junho de 2015
Inês Antunes Malta


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