terça-feira, 6 de setembro de 2016

Arte Urbana
das feelingcatchers às alterações na dinâmica urbana, na cidade em si



Amor, ódio, amizade ou raiva. As mensagens espalharam-se pelas ruas. As ideias surgiram em força, umas atrás das outras. Temos os artistas, temos os autores desconhecidos, e temos as feelingcatchers – as autoras das páginas de Facebook dedicadas às mensagens de rua e a todos os sentimentos que delas podemos retirar. A arte urbana, as mensagens escritas e os graffitis feitos nas paredes são cada vez mais um elemento presente na vida das cidades. Fazem parte delas. Por toda a parte, há uma frase escrita, uma imagem, uma mensagem a querer chegar a quem passa por essa rua e a recebe, e quem sabe a leve consigo. Através de uma fotografia. E por isso é importante perceber, ou tentar perceber, de que forma a arte urbana se relaciona com a cidade em si, a altera e se torna parte da dinâmica urbana - mas também da vida das pessoas.

São cada vez mais as frases escritas nas ruas, na mesma medida em que também são cada vez mais os coleccionadores deste tipo de fotografia. Pessoas que se dedicam a fotografar todas estas mensagens, e a partilhá-las com todos os outros. Tudo isto se tem feito maioritariamente através da internet, em blogues e páginas de Facebook. Ana Luísa Nogueira é uma das guardadoras destes sonhos que as fotografias de rua trazem consigo. Advogada, e mãe de duas filhas, Ana Luísa decidiu juntar as suas duas paixões. Começou por fotografar as suas filhas pequeninas inseridas nas mensagens. “Sempre fiz este tipo de fotografias. Numa parede, num mural, inseria as minhas filhas lá, para lhes tirar fotografias e fazer-lhes uma espécie de álbum”, conta. A ideia de transpor tudo isto para uma página de Facebook - Ana Luísa mal esperava vir a conseguir os já mais de 160 mil gostos - só surgiu depois, quando “as pessoas começaram a querer as fotografias lá mas sem as miúdas.” Hoje, a autora de Fotos de Rua estabelece várias parcerias, entre as quais com a Lisbon Lovers e a Bainha de Copas. Todas as fotografias postadas na sua página passam por uma prévia selecção. “Não publico asneiras, política, religião, nem uma foto que já não se sabe quando foi tirada ou que não tem a identificação do autor.”

Já Luísa Ramos, autora da página do Facebook O que diz Lisboa?, concentra toda a importância do seu projecto na ideia de que é preciso retratar o país em que vivemos ontem, em que vivemos hoje, e em que viveremos amanhã. É preciso mostrar aquilo que existe e aquilo de que somos feitos, seja em graffiti, stencil, autocolantes ou até giz. Ex-jornalista, fotógrafa e DJ, a autora de O que diz Lisboa? sempre gostou muito de Street Art, e tudo o que estava escrito nas paredes da cidade sempre foi um tema ao qual dedicou o seu tempo e a sua atenção.

“Eu não faço censura, acho que tudo o que está nas paredes foi feito por alguma razão. O trabalho que eu faço é documental e, por isso, eu não posso escolher o que eu gosto e o que eu não gosto”, diz Laura, defendendo que tudo o que existe nas paredes está lá por uma razão e que por isso tanto é bom que esteja uma mensagem boa como uma mensagem menos boa. O que importa é a mensagem, e a transmissão dessa mesma mensagem. Para Laura, vivemos numa altura em que as pessoas estão revoltadas e têm muita coisa para dizer. As paredes são uma forma de o fazer. O que está nas paredes reflecte muito as características sociais de um país e é importante que isso esteja documentado. 


Mesmo sendo um tema cada vez mais abordado, e uma realidade cada vez mais perto de todos nós, este é também um tema sobre o qual as opiniões divergem. Há pessoas para as quais as mensagens de rua não existem, mesmo que passem por uma todos os dias, não reparam nelas. E depois ainda temos as pessoas que consideram certas mensagens uma falta de respeito, muitas vezes até um acto de vandalismo. A Street Art é uma arte cada vez mais reconhecida, é cada vez mais dado o devido reconhecimento a quem a faz e até já a Câmara Municipal de Lisboa convidou artistas de renome internacional para virem pintar prédios inteiros. Lisboa foi até já considerada uma das melhores cidades do mundo para ver Street Art.

Mas talvez seja importante recuar aqui, até ao início deste conceito, ao início deste conceito no nosso país. Como é que ele chegou? Como é que começou a ganhar espaço dentro das cidades? E de que forma influencia, ou não, as dinãmicas urbanas, tudo o que acontece na cidade em si? A expressão “Arte Urbana”, actualmente utilizada para designar todas as manifestações artísticas feitas em espaços públicos, foi utilizada pela primeira vez dentro da área da arquitetura. Tal como explica Nuno Brito, no seu artigo “A Contestação Social e a Criação Literária na Arte Urbana pós 25 de Abril em Portugal”, a difusão da pintura em murais neste contexto de arte urbana assumiu, inicialmente, entre tantas outras, a função territorial - isto é, demarcava a posse de um determinado grupo em determinado sítio. Era uma espécie de assinatura que os identificava e era pintada na parede de modo a todos saberem que esse grupo tinha a posse e o controlo desse sítio, dessa parte da cidade. 

As mensagens escritas nas paredes não passam por filtros, são apresentadas a quem as vê, a quem passa pelas ruas onde elas estão, tal e qual como são, tal e qual como estão. A cidade é assim vista “como um campo e suporte de mensagens – de transmissão de informação (artística, crítica, incisiva)”, (Brito, Nuno, 2013). Dentro deste conceito, isto é, dentro da arte urbana, o suporte utilizado para transmitir determinada mensagem, determinado conceito, pode ser qualquer um. Tomando o exemplo do artista Bansky, que, mantendo a força do anonimato, de certa maneira comum nestes trabalhos de intervenção, fez várias pinturas em murais de grandes dimensões em várias cidades, assumindo um papel crítico em relação a vários aspectos da nossa sociedade contemporânea, como por exemplo em relação às desigualdades sociais. Bansky, considerado por Nuno Brito como “um autêntico activista artístico”, foi capaz de dar voz a todas estas situações através do seu trabalho, que tem em si e faz vir ao de cima um grande conjunto de emoções e sentimentos. Como é o caso da revolta, e da vontade de exprimir algo que é resultado dessa mesma revolta perante a situação do país, e, neste sentido, é inevitável voltar ao retornar até ao 25 de Abril. Pegando no exemplo de Nuno Brito, no seu texto, sobre o início da arte urbana em Portugal, a cidade em si, com as suas paredes e muros, foi uma mostra de um sentimento geral de libertação na pintura mural do pós 25 de Abril. Há um centro de documentação, pertencente à Universidade de Coimbra, onde estão guardadas várias fotografias de paredes e murais que reflectem as perspectivas, as ansiedades, os contentamentos, e todo o espírito da população no que veio depois da Revolução de Abril.


A cidade é um sítio de circulação de muitas pessoas, seja em trajectos casa-trabalho ou em passeios de fim de semana. É, assim, para a arte urbana, uma espécie de “museu vivo”. Muitas das representações pintadas nos murais, nas paredes, e nos restantes e demais sítios, são também elaboradas a pensar no contacto com as pessoas que passam nas ruas. Para além da mensagem a passar, importa tentar perceber de que forma é que essa mensagem vai ser passada de maneira a chegar às pessoas e a ter o resultado pretendido - provocar algo nas pessoas. São as pessoas, em conjunto com a pintura feita nos murais, nas paredes, seja onde for, que amplificam a mensagem e criam novas formas de a percepcionar. Cada pessoa é uma pessoa. Cada reacção é uma reacção. A mesma mensagem escrita num espaço público tanto pode criar sentimentos bons como sentimentos maus. Mas o mais importante é estar lá. É provocar algo nas pessoas. É fazer parte da cidade e de quem lá passa, porque está mesmo lá. É um elemento da cidade. É parte integrante da cidade, e é inevitável: vai mudar algo na vida e na dinâmica das cidades, ou pelo menos na vida das pessoas que por ali passam e vêem. Como é o caso das feelingcatchers, Ana Luísa Nogueira e Luísa Ramos, que sempre que há oportunidade aproveitam para tirar mais uma fotografia a uma nova mensagem, a um novo graffiti, a um novo espaço. E depois essa fotografia vai, através das páginas do Facebook, nestes dois casos em concreto, difundir-se. Chegar a mais pessoas. Quem sabe a outros feelingcatchers que, tendo este interesse e gosto em comum, se dirigirão ao sítio para ver e fotografar a mesma mensagem, porque um ou dois dias depois ela pode já lá não estar. Mas isso já é outra questão. “Os espaços assumem hoje um papel crucial na configuração das paisagens urbanas e na estruturação da vida pública e colectiva nas cidades. Apesar de serem lugares de passagem, de distracção e de sociabilidades efémeras e fugazes, são territórios onde se materializa uma parcela substancial dos encontros e das interacções entre os sujeitos, assim como da sua relação simbólica com a cidade.” (Fortuna; Ferreira; Abreu, 1999).

Inês Antunes Malta

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