terça-feira, 6 de setembro de 2016

“Quem te ama não te agride”


A violência no namoro é um problema social relevante, não é um fenómeno tão raro quanto se possa pensar. Tem um impacto destrutivo sobre as vítimas, independentemente do tipo de violência exercido, seja ele físico ou psicológico. Relativamente a esta situação, em caso de violência, há sempre a possibilidade de a evitar, de a negar, de a considerar rara ou até de a aceitar - mas há, sobretudo, que a prevenir e combater.

Foi apresentada no início de 2015, no dia 12 de Fevereiro, a campanha contra a violência no namoro - “Quem te ama não te agride”, pelo Governo, através da Secretaria de Estado dos Assuntos Parlamentares e da Igualdade e da Secretaria de Estado do Desporto e da Juventude. O futebolista William Carvalho, a apresentadora Sílvia Alberto e a jornalista Joana Latino são algumas das caras que promovem esta campanha de sensibilização,

Segundo o estudo “Transmissão intergeracional da violência: o contexto familiar, as relações de intimidade e as crenças dos jovens”, realizado pela investigadora Madalena Oliveira, da Universidade Fernando Pessoa e, com base num inquérito realizado nos anos letivos de 2008 a 2010 que envolveu 1476 jovens com idades entre os 15 e os 20 anos de escolas de seis distritos do norte e centro do país, cerca de 25% dos jovens participantes, que mantinham àquela data um relacionamento íntimo, admitiu ter, pelo menos uma vez, adotado um comportamento violento com o seu parceiro/a, enquanto cerca de 22,5% admitiu ter sido vítima de agressão por parte do  parceiro/a.

Até 2012, não existia monitorização de casos de violência no namoro. No ano de 2013, quando passou a haver, a PSP registou 1050 ocorrências. No ano seguinte, 2014, verificou-se um aumento de 50%: nos estabelecimentos de ensino, públicos e privados, abrangidos pela PSP, foram feitas 1549 queixas por violência no namoro.

Anaísa Santos tem 25 anos e está neste momento a acabar a sua licenciatura em Línguas Modernas. Durante 5 anos da sua vida, manteve uma relação na qual foi vítima de violência psicológica. A violência no namoro é uma realidade cada vez mais presente na vida dos jovens portugueses.

“Conheci-o em 2006, quando tinha 16 anos, 1 mês antes de fazer os 17 para ser exacta. Já o conhecia da minha escola mas nunca tinha travado amizade com ele, pertenciamos a anos diferentes de escolaridade. Comecei a falar com ele pelo Messenger, já não sei por que motivo, e démo-nos bastante bem. Além disso, ele era daqueles "bad boys" e eu na altura estava a passar por uma fase parva de rebeldia adolescente, e por isso achei-lhe bastante piada”, conta.

Começaram a sair juntos. Iam às piscinas municipais, ao bar da vila, e a tantos outros sítios. Umas semanas depois, começaram a namorar. “Disseram-me que, logo no primeiro dia em que começámos a namorar, ele tinha ido levar outra rapariga amiga dele a casa, e que os viram juntos. Mas, na altura, como estava meia tola com o namoro, e quem me deu a informação foi um rapaz que gostava de mim, eu desvalorizei porque achei que era mentira e que ele só queria que eu terminasse tudo. No fim, vim a saber que era mesmo verdade”.

No seu aniversário, Anaísa começou a aperceber-se realmente dos sinais de posse pela parte do companheiro. O primo de Anaísa veio visitá-la nessa altura, e o namorado teve ciúmes desde logo. Começou a criar imensas histórias na sua cabeça, mas também a passar dos pensamentos às acções. “A prenda de anos do meu companheiro para mim tinha sido um gatinho branco. Mas, como eu não sabia que nome lhe dar, o meu primo chamou-lhe Skazi e, pronto, ficou. O meu namorado deixou de gostar do gato porque tinha sido o meu primo a dar-lhe o nome, e achou que eu tinha aceite o nome porque gostava do meu primo. Eu desvalorizei todas estas atitudes, até porque ele não foi agressivo e na altura até achava que aquela demonstração de ciúmes era a prova de que ele gostava de mim”, diz Anaísa.

Entretanto, o companheiro de Anaísa foi trabalhar para França, em Setembro, e foi aí que as cenas de cíumes começaram em força. Anaísa voltou para Coimbra para acabar o 12ºano e o seu companheiro ligava-lhe todos os dias sempre para saber onde estava e com quem estava. “Se estivesse em casa, estava tudo bem, mas se eu estivesse com amigos no café, ou se fosse sair para algum lado, vinham os cíumes e pedia-me muito delicadamente para não ir. Se eu fosse, ele ficava chateado. Então, comecei a esconder-lhe que saía com os meus amigos, e até passei a ficar mais em casa para não me arriscar a ter de me chatear, ou ele comigo, neste caso”, diz.

O padrasto de Anaísa ficou doente e ela teve de vir para Lisboa estudar. Nessa altura, o namorado de Anaísa acalmou porque sabia que ela não vivia sozinha e que o padrasto, mesmo doente, também a proíbia de sair, fosse para que lado fosse. O padrasto acabou por falecer no início de Fevereiro, Anaísa deixou a escola no final desse mesmo mês e voltou para Alvaiázere, com a mãe. “Ele continuava a não gostar que eu saísse com os meus amigos e foi aqui que as ameaças e as injúrias começaram. Se eu saísse de casa para ir tomar café, simplesmente, para ele, eu já tinha outra pessoa. Ameçava-me que voltava a Portugal de surpresa e que me apanhava. Dizia-me que se descobrisse com quem é que eu andava metida lhe dava porrada, mas o mais engraçado é que nunca existiu ninguém”.

A mãe do companheiro de Anaísa ainda tornava, muitas das vezes, as situações em algo pior. Ela própria também era vítima de violência doméstica, psicológica mas também física, por parte do marido. “Ela dizia-me para não ligar, dizia-me que ele só fazia isto porque gostava muito de mim e que eu tinha muita sorte por isso. Ao mesmo tempo, colocou-me imensa pressão em cima, dizendo que eu não era boa para o filho dela. Tive de começar a cozinhar, muitas vezes para ela e para a família dela, limpar-lhe a casa, entre outras coisas. Quando ele vinha de França, era eu que lhe tinha de ir raspar a roupa cheia de cimento que ele trazia de lá e pô-la na máquina de lavar. Tinha de limpar o quarto dele e cozinhar. Mas, mesmo assim, fizesse o que fizesse, segundo a mãe dele, eu nunca era suficientemente boa para ele”, refere,

Nesta altura, Anaísa não podia sair com os amigos mas, quando o seu companheiro saía com os seus, tinha duas hipóteses: ou ia com eles, ou ficava em casa. Caso decidisse sair sem ele, os insultos e as ameaças voltavam. “Fechava-me no quarto e obrigava-me a ouvi-lo a insultar-me. Quando eu gritava porque queria sair e para ele me deixar em paz, a minha mãe perguntava-me o que se passava, e ele dizia sempre que eu era doida e que tinha começado a gritar com ele do nada. A minha mãe acreditava sempre nisto e nunca deu importância quando eu dizia que era ele quem começava tudo”. Quando Anaísa o expulsava de casa, ele não ia. Roubou uma das chaves lá de casa e chegou a ir embora e a voltar a meio da noite, sem eu perceber como ele tinha entrado. Nesta altura ponderou muitas vezes terminar tudo, mas o medo falou mais alto. O medo dele, mas também o medo de ficar sozinha. Então continuou com a relação, pensando sempre que o problema era ele estar longe e que, um dia, quando voltasse e estivesse juntos de novo tudo iria ficar bem.

Com 19 anos, Anaísa via-se obrigada a deixar de lado festas e cafés com amigos. “Foi muito complicado quando mudei de casa para ir viver com a minha melhor amiga. Ela é daquelas raparigas que adora sair, adora festas e não gosta de se prender a ninguém. Era complicado conciliar a minha amizade com ela enquanto namorava com ele. A minha vida passou a resumir-se a aulas e a ele, mais nada”, afirma.

Quando passou da aulas para o estágio, Anaísa não viu a sua vida melhorada. Pelo contrário. O sítio onde estava a estagiar incluía alojamento. O companheiro tirou férias, voltou a Portugal e vigiava-a enquanto ela estagiava. Fingiu que tinha aparecido lá de surpresa, levava-a a passear nas suas pausas, e depois fingia que se ia embora. Não ia. Na verdade, ficava a vigiá-la. Com tantos problemas causados pelo namorado, Anaísa acabou por desistir do estágio. “Corri o risco de não acabar o curso de hotelaria mas a minha orientadora soube da minha história e deu, ainda assim, o meu estágio por completo. Tive muita sorte”, conta.

Anaísa chegou ao ponto em que, no seu aniversário, apenas os seus familiares lhe ligavam a dar-lhe os parabéns. Nenhum dos seus amigos lhe falava. Estava sozinha. Só o tinha a ele, e aos amigos dele, dos quais nem sequer gostava. Aqui, já não era preciso um motivo para que o namorado a insultasse. Anaísa chegou a pesar apenas 45kg e entrou em depressão. Entretanto, no seu local de trabalho, conheceu um rapaz, amigo de uma das suas amigas. “Eu tinha alguém que desinteressadamente me deu um ombro para chorar. Nesta altura, ponderei mais que nunca deixar o meu ex. Não por causa do outro rapaz, mas porque me tinham mostrado que havia mais para além do que estava habituada até ali”, confessa.

Quando o então companheiro de Anaísa voltou, no Verão, começou a violência física. Bateu no rapaz e quase partiu um braço a Anaísa. “Nessa altura, eu estava a tomar anti-depressivos e tomei uma quantidade monstra de todos eles. A minha mãe levou-me para o hospital, fizeram-me uma lavagem ao estômago e, no dia a seguir, quem é que mandaram para me ir buscar? O meu ex! Levou-me para minha casa e deixou-me lá sozinha. Fiquei sozinha em casa e tranquei a porta. Claro que, como ele tinha uma chave, entrou em minha casa a meio da noite, apanhou-me a dormir e roubou-me o telemóvel. Fiquei sem maneira de comunicar com ninguém durante dois ou três dias”. Mas nem isto foi o suficiente para que a relação terminasse. “Fui para França. Sim, ele voltou e eu fui com ele, e logo na primeira semana as coisas voltaram a não correr bem”, conta. “Mas a situação acabou por se arrastar durante 8 meses. Não podia fazer nada do que gostava de fazer, e quando ele chegava tinha de ter a comida na mesa e lavar a loiça logo depois de jantar. Eu fazia tudo, enquanto ele se ia deitar. Um dia, ele saiu e eu liguei à minha mãe a chorar, a pedir ajuda. Ela deu-me dinheiro para um bilhete de avião, ligou para ele a dizer-lhe que eu tinha de voltar para assinar umas coisas importantes no banco e só assim consegui vir embora”.

Depois disto, desligou o telemóvel, não lhe disse nada durante uns meses e inscreveu-se nos exames nacionais para tentar entrar na universidade. “Quando ele voltou, veio à minha procura, mas não me pôde fazer nada porque a minha mãe estava comigo. Disse que eu não tinha o direito de fazer o que fiz, que se eu fosse para a universidade ele acabava comigo. E eu enchi-me de coragem e disse-lhe: Boa viagem. E acabei tudo. Se chegou para me deixar em paz? Não. Até hoje me continua a perseguir e chatear. Depois de ter acabado com ele, fazia-me esperas à porta da minha casa, ligava-me a meio da noite. Quando eu finalmente pude ter facebook, mandava-me muitas mensagens, e abordava-me na rua quando eu estava sozinha”, refere Anaísa. Foi preciso, há cerca de um mês atrás, uma denúncia nas redes sociais, e um post na página pessoal de Anaísa, feito pela própria, para o ex-companheiro de Anaísa ganhar vergonha e parar. “Entretanto, bloqueei-o no facebook, não tenho telemóvel, portanto não sei se caso nos vejamos quando eu voltar a Portugal ele me vai deixar em paz de vez ou se tudo vai continuar”.

Para ajudar a prevenir e a combater casos como o da Anaísa, de violência no namoro, a Universidade de Aveiro desenvolveu um jogo online para ajudar a gerir este tipo de situações. O jogo chama-se Unlove, que, em português, significa “desamor”, e é um jogo online gratuito. Nele, através de avatars, os utilizadores podem viver a aprender a gerir várias situações, que podem acontecer entre o casal, de conflito ou até mesmo de violência, seja ela física ou psicológica.

Maio de 2015
Inês Antunes Malta

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